
Sobre o conceito de Criatividade Originária em Winnicott
Maíra Golovaty Lederman
RESUMO
Winnicott desenvolve no decorrer de sua trajetória intelectual um conceito de criatividade inédito no campo psicanalítico, como sendo um potencial criativo que é universal, e que, quando não é conquistado devido às falhas ambientais, irá formar seres humanos deturpados cujas vidas são desprovidas de sentido pessoal. O conceito de criatividade é algo tão essencial na obra de Winnicott que será uma das categorias diagnósticas para o critério de saúde.
Este trabalho se pretende a analisar este conceito winnicottiano tão fundamental, compreendendo as minúcias da delicada condição do bebê nos estágios primitivos do amadurecimento. Será abordado igualmente o modo como a criatividade originária participa na constituição do self saudável, sua relação estreita com a ilusão de onipotência, seu percurso num ambiente suficientemente bom e as formas de suas distorções patológicas.
Palavras-chave: criatividade originária, ilusão de onipotência, ilusão originária, espontaneidade, gesto espontâneo.
Introdução:
O Conceito de Criatividade Originária é inédito no âmbito da Psicanálise. Diferentemente da idéia de que a criatividade humana é resultante da sublimação das pulsões, Winnicott formula a ideia de uma criatividade originária inerente à natureza humana e presente como tendência desde o início da vida.
Intimamente relacionada à espontaneidade básica , a criatividade originária é condição para a constituição do self , desdobrando-se em todo o desenvolvimento psicossomático dos indivíduos humanos e relacionando-se estreitamente com a noção de criatividade como aquilo que dota de sentido um ato e dá o colorido de valor à vida humana. Portanto, a criatividade na teoria winnicottiana diz respeito à expressão significativa do viver manifesta no gesto espontâneo, formulando uma espécie de “ética do sentido”.
É importante ressaltar que criatividade aqui não designa a conotação artística do termo; mas a possibilidade de criar sentido para a realidade externa.
“Se existe um verdadeiro potencial criativo, podemos esperar encontra-lo em conjunto com a projeção de detalhes introjetados em todos os esforços produtivos, e devemos reconhecer a criatividade potencial não tanto pela originalidade de sua produção, mas pela sensação individual de realidade da experiência e do objeto.”
Esse campo do sentido é inato, porém existe a princípio enquanto potencial humano a ser conquistado, e para que se desenvolva, dependerá imensamente dos primeiros acontecimentos de ilusão na fase de dependência absoluta, os quais quando fracassam parecem impelir o humano à uma mera mecânica esvaziada exatamente daquilo que o define: sua capacidade essencial de acreditar na sua capacidade de construir um viver significativo.
Sendo assim, estamos falando de um potencial criativo que é universal, e que quando não é conquistado devidamente impactará na formação de seres humanos deturpados, cujas vidas são desprovidas de sentido pessoal. O conceito de criatividade é algo tão essencial na obra de Winnicott que será uma das categorias diagnósticas para o critério de saúde.
Veremos como a delicada condição do bebê nos estágios primitivos do amadurecimento apresenta uma séria de minúcias e sutilezas na relação com o ambiente que o cuida, e que é do sucesso dessa relação que a criatividade poderá se estabelecer como base para a constituição do self saudável, sua relação estreita com a ilusão de onipotência, seu percurso num ambiente suficientemente bom e as formas de suas distorções patologizantes quando este fracassa em oferecer o holding necessário.
Estágios Iniciais do Amadurecimento e “Ilusão de Onipotência”
Para o pediatra e psicanalista inglês D. W. Winnicott, todo ser humano é dotado de uma tendência inata à integração em uma identidade unitária, a partir de um estado de não-integração que é natural em todo bebê humano. Este estado de não-integração significa que ainda não existe um self integrado que organiza e dá sentido às experiências e sensações.
Além da tendência inata à integração, Winnicott considera que todo indivíduo humano é dotado de algo que ele denominou “criatividade originária”, conceito este que não se refere ao domínio das manifestações artísticas, mas ao modo de abordar o mundo e de relacionar-se com a vida e com o estar vivo. As condições para que esta criatividade originária se desenvolva enquanto parte integrante do viver devem ser promovidas ainda nos estágios iniciais do desenvolvimento humano.
Por isso Winnicott nomeou a etapa primitiva da vida humana de “Dependência Absoluta”, pois as bases para a constituição de um ser humano emocionalmente saudável estão sendo formuladas e dependem totalmente dos cuidados ambientais “suficientemente bons” para que se tornem um fato. Sendo assim, o ambiente tem uma participação crucial na constituição do indivíduo humano.
No entanto, apesar de extremamente dependente nesta etapa, o bebê não tem ainda nenhuma consciência de sua condição precária, pois a sustentação oferecida pelo ambiente neste período tem por finalidade garantir que o bebê possa habitar um mundo subjetivo cuja característica primordial é a “ilusão de onipotência”, a partir da qual o bebê ignora a dependência de sua condição e possui a apercepção de que é capaz de criar os objetos de sua necessidade.
É a partir de seus estados excitados (por exemplo, a fome) que se desenvolve uma expectativa de que há algo para ser encontrado em algum lugar (por exemplo, o seio).
“(...). Se tudo vai bem, o bebê estará pronto para descobrir o mamilo, e isso em si mesmo é um tremendo acontecimento, independente do ato de mamar. É muito importante do ponto de vista teórico que o bebê crie este objeto, e o que a mãe faz é colocar o mamilo exatamente ali e no momento certo para que seja o seu mamilo que o bebê venha a criar. (...)”.
Quando a mãe está em condições saudáveis para se preocupar com a tarefa para a qual está biologicamente orientada (dizemos que a mãe foi capaz de desenvolver o que Winnicott denominou de “preocupação materna primária”), ela irá fornecer o contexto desejável para o início do relacionamento excitado, de tal modo que permitirá que este bebê tenha a “ilusão de onipotência” garantida neste início. Em algum momento deste delicado processo, o bebê vive uma experiência em conjunto com uma realidade exterior. Através da repetição de um padrão de atendimento às suas expectativas instintuais, seu gesto espontâneo ganha ancoragem real, ao mesmo tempo que, do ponto de vista ontológico (do bebê), ganha o estatuto simbólico de uma criação.
Esta relação primária com o mundo exterior acontece muito antes da distinção entre o eu e o não-eu pelo bebê, constituindo um paradoxo: ainda sem saber nem de si e nem do mundo, o bebê concebe como vindo dele, de maneira onipotente, aquilo que realmente lhe importa e lhe faz viver: o seio. Este paradoxo, diz Winnicott, é inerente e não se deve jamais tentar resolve-lo perguntando ao bebê se ele encontrou um objeto real ou se o criou.
A este conjunto das primeiras experiências de contato com a realidade externa, Winnicott denominou “primeira mamada teórica”, que quando ocorre satisfatoriamente, irá fornecer as bases para um viver criativo. De forma inversa, quando mal conduzida, pode ocorrer uma série de problemas, e um padrão duradouro de insegurança nas relações pode se instaurar.
Na primeira mamada teórica o bebê está pronto para criar o mundo, cabendo à mãe tornar possível ao bebê a ilusão de ter criado o objeto de sua necessidade. A mãe não precisa reconhecer intelectualmente o que é importante que o bebê crie, pois estando identificada com as necessidades do bebê, por intermédio de seu corpo e pela observação atenta de seu comportamento, ela saberá exatamente como apresentar o objeto de necessidade do bebê no momento apropriado. Obviamente que o que a mãe apresenta ao bebê não é exatamente o que ele apercebe, mas devido à adaptação absoluta da mãe que permite que ocorra o fenômeno da ilusão, tudo se passa como se fosse.
“Obviamente, na condição de filósofos sofisticados, sabemos que aquilo que o bebê criou não foi aquilo que a mãe forneceu, mas a mãe, por sua adaptação extremamente delicada às necessidades (emocionais) do bebê, está em condições de permitir que ele tenha esta ilusão. (...)”
Cabe dizer que essa adaptação absoluta da mãe não é perfeita nem mecânica, e que as “imperfeições” da mãe nesse período, quando adaptativas, são perfeitamente assimiláveis pelo bebê, desde que não sejam traumáticas, a ponto de romper a ilusão de onipotência.
Este período de adaptação absoluta da mãe decresce gradualmente, de acordo com a capacidade crescente do bebê em desenvolver seus próprios recursos para tolerar a desadaptação. Deste modo, seria equivocado admitir o princípio da realidade como uma imposição fruto da insistência da mãe. De acordo com a teoria winnicottiana, só é possível chegar de modo satisfatório à desilusão tendo passado em primeiro lugar pela ilusão, até que o bebê tenha condições de aceitar e até de usufruir da desilusão.
Os conceitos de “criatividade originária” e “ilusão” estão tão intrinsecamente interligados na obra de Winnicott que por vezes até se confundem. Seria impossível falar em um deles sem se referir ao outro, de modo que alguns autores utilizam o termo “ilusão originária”, visto que a criatividade originária existe enquanto tendência em todo ser humano e só se atualiza quando existe um contexto apropriado que possa garantir que o bebê vivencie a “ilusão de onipotência”.
A noção de ilusão aparece anteriormente na psicanálise com sinal negativo, como uma dimensão relacionada ao quadro sintomático das neuroses, e deste modo associada, em sua origem, ao erro, engano ou desfiguramento da realidade, que para a psicanálise de caráter médico e nosológico como a freudiana, eram dimensões que se encerravam dentro de sua noção específica de sintoma.
Em Winnicott, no entanto, o termo ilusão sofre um deslocamento semântico, ganhando um sinal positivo, essencial à constituição do indivíduo e fundamento da capacidade de estabelecer relações significativas com a realidade externa.
Os Sentidos de Real
À medida que o amadurecimento prossegue, a desadaptação gradual da mãe permite ao bebê ir aos poucos assimilando a externalidade do mundo. A ilusão de onipotência inicial perde então seu teor onipotente, mas seria equivocado pensar que aqui há uma quebra da ilusão. O que se perde é o sentimento de onipotência, de controle mágico do mundo real. Mas a ilusão, de certa forma, permanece. Com o tempo surgirá a compreensão de que a existência do mundo é independente. No entanto, se tudo correr bem, o sentimento de criação do mundo pessoal não desaparece; e é essa ilusão que dará subsídio para que o indivíduo possa constituir o senso de realidade objetivamente percebida. Ou seja, antes que haja uma compreensão intelectual da realidade externa, é fundamental, para um viver criativo, que o indivíduo tenha a capacidade de “acreditar em...”, como postulou Winnicott.
É a capacidade de “acreditar em...” que capacitará o indivíduo saudável a continuar a exercer a criatividade de formas cada vez mais complexas, pois é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o self. É sobre a criatividade originária que todo o viver criativo é construído.
Na teoria winnicottiana não há apenas um, mas vários sentidos de realidade. No início da vida o bebê não tem ainda nenhum senso de real constituído, e começa a viver numa realidade subjetiva.
O sentido da externalidade vai sendo constituído com o tempo, só sendo possível quando construído sobre a base real do mundo subjetivo. Por mais concreta que a realidade externa possa parecer, ela só pode ser sentida como real pelo indivíduo se este tiver bem constituído o senso de realidade subjetiva, pois é a partir dele que será possível dar sentido e realidade à externalidade, já que toda objetividade é, ao mesmo tempo, subjetiva. Como diz Winnicott, a objetividade é um termo relativo, porque aquilo que é objetivamente percebido, é, por definição, subjetivamente concebido.
É apenas dentro de um mundo de significações que as coisas e as pessoas remetem umas às outras e adquirem sentido. A crença na realidade adquirida durante a ilusão de onipotência é condição de possibilidade para a posterior constatação intelectual da existência da realidade objetivamente percebida, ou realidade compartilhada. E mesmo esta constatação intelectual jamais consegue prescindir da crença básica.
Inúmeros exemplos da clínica com psicóticos ilustram esta conceituação winnicottiana, já que em muitos casos os pacientes padecem exatamente por não conseguirem se sentir reais ou fracassarem no contato com a realidade, a despeito da percepção, como capacidade mental, permanecer intacta.
Sentir-se real, perceber a realidade compartilhada e transitar entre os sensos de realidade são possibilidades que não derivam do que é verdadeiro do ponto de vista objetivo, mas sim da qualidade da experiência vivida, concebida com base na realidade subjetiva.
No início da vida do bebê, como o único senso de realidade admissível é o subjetivo, é crucial que a mãe proteja este bebê, evitando que ele seja surpreendido com um sentido de realidade que ele ainda não tem recursos para abarcar no âmbito de sua onipotência.
Portanto, toda a experiência do bebê neste período, para poder ser sentida como real, deve respeitar a natureza do “objeto subjetivo”, que não denuncia o caráter de sua externalidade real, não surpreende o bebê, não o afronta, não o submete. O objeto subjetivo, por definição, é aquele que surge como criação em resposta ao gesto espontâneo do bebê, podendo ser integrado pelo mesmo como parte do self.
Com relação à fase da “ilusão de onipotência”, não se trata de o bebê ser regido pelo “Princípio do Prazer”, como diria Freud, pois independente de ter seus impulsos instintivos satisfeitos ou frustrados, o que importa é que a comunicação destes ocorra de tal modo que os acontecimentos se tornem experiências do indivíduo.
Essa vivência satisfatória na área da ilusão de onipotência é fundamental não só para que o indivíduo possa progredir rumo à integração do self, mas para que ele possa lidar com a cisão básica inerente à natureza humana, construindo posteriormente as pontes que ligarão o mundo subjetivo ao mundo objetivamente percebido, de forma que neste trânsito o indivíduo não perca o acesso ao seu mundo pessoal e imaginativo.
No devido tempo, o bebê poderá conceber a existência externa do mundo, fora do seu controle mágico, e esse processo de desilusão é fundamental para seu desenvolvimento, desde que constituído sobre uma bem fundada capacidade para a ilusão.
Deste modo, podemos formular que a questão do contato com a realidade compartilhada, tema este que será central no trabalho com psicóticos, irá depender imensamente do modo pelo qual a realidade nos foi introduzida no início da vida, quando se tratava da realidade subjetiva.
O Fracasso do Mecanismo de Ilusão e Seus Desdobramentos
Winnicott, na sua extensa experiência clínica tanto com bebês como com psicóticos, constatou que diversos elementos do amadurecimento inicial também estão presentes nos casos de pacientes psicóticos adultos, especificamente no que se refere à precária condição do self e à dificuldade do contato com a realidade compartilhada.
No caso de bebês, estas características são consideradas normais devido à sua imaturidade natural, condizente com seu estágio de desenvolvimento. No entanto, tal comparação levou Winnicott a indagar o que poderia ter acontecido à tais pacientes nas fases mais primitivas de suas vidas a ponto de se extraviarem do caminho saudável de seu amadurecimento.
A resposta teórica de Winnicott é de que, justamente no estágio do amadurecimento de dependência absoluta desses indivíduos, o ambiente falhou na suas tarefas primordiais (holding, handling e apresentação do objeto), interrompendo desta maneira a “continuidade de ser” dos mesmos, gerando a patologia. As experiências iniciais no mundo subjetivo foram intensamente reais, mas o ambiente fracassou na difícil tarefa de suportar o processo de ilusão/desilusão do bebê, de forma que o indivíduo teve um amadurecimento deformado pela falha na constituição/manutenção da realidade subjetiva, danificando a criatividade originária.
Tais indivíduos crescem e tornam-se adultos apenas intelectual e fisicamente, mas do ponto de vista emocional permanecem imaturos num sentido fundamental, tendo deformada a personalidade.
A patologia exemplar deste tipo de deformidade é a esquizofrenia adulta, na qual o paciente é frequentemente atormentado pelo mundo interno e sofre constantemente do que Winnicott denominou “agonias impensáveis”. Além disso o paciente fracassa frequentemente em estabelecer relação com a realidade externa, que é vista como ameaçadora, e por vezes alucinada.
Apesar de exemplares, não é apenas nas patologias que apresentam sintomas mais veementes que podemos encontrar este tipo de falha primitiva que prejudica o viver criativo. Winnicott, como um estudioso atento da natureza humana, verificou que certas formas de “saúde” são na verdade o que ele chamou de “fuga para a sanidade”, e, indo além do que seria o estereótipo de saúde como ausência de sintoma, Winnicott percebe o quão doentes se apresentam alguns indivíduos que, embora não expressem sintomas tradicionais dentro do quadro de referências da psicanálise tradicional, estão tão “colados” na realidade externa que denunciam a precariedade de seu mundo subjetivo: são as personalidades do tipo “falso-self”.
Nestes casos, a espontaneidade tende a ser anulada, e o indivíduo, apesar de conseguir lidar com as exigências da vida de modo aparentemente satisfatório, padece de um completo empobrecimento de sentido e sentimento de inutilidade. São pessoas que não sabem como agir quando não possuem um script a ser seguido e não conseguem experimentar satisfação pessoal com relação às suas conquistas. As personalidades falso-self aferram-se à realidade externa para protegerem seu self verdadeiro, que sofrera nos estágios iniciais o trauma que deflagrou a defesa.
Este self verdadeiro, encapsulado para ser protegido, talvez possa ser resgatado num ambiente que ofereça condições muito específicas no que concerne ao cuidado e à confiabilidade, o qual o setting analítico é o protótipo, tendo como tarefa conduzir o paciente a uma “regressão” à fase anterior ao trauma, que só será possível de ser realizada se o paciente puder desenvolver a confiança de que não será novamente traumatizado.
Concluindo, a noção de Criatividade Originária é central na obra de Winnicott, participando ativamente da constituição do psiquismo humano desde o início. É a criatividade originária que dá as condições para que o bebê humano possa, na precariedade da sua realidade subjetiva, vivenciar a ilusão de onipotência e fincar raízes em seu mundo subjetivo. E é exatamente a possibilidade desse intercâmbio entre os mundos subjetivo e objetivamente percebido, numa fase mais madura do desenvolvimento, que permitirá que o indivíduo vivencie suas experiências como reais e significativas.
Portanto, não apenas a saúde, mas toda a riqueza da personalidade, depende fundamentalmente de como é vivida a experiência da ilusão de onipotência, conservando como parte integrante da personalidade a criatividade inerente ao estar vivo.
Referências bibliográficas
Winnicott, Donald W. 1988: Natureza Humana.
Dias, Elsa O. 2003: A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott. Rio de Janeiro, Imago.